Tempo de aprender a ser de novo

Thais Cimino – 30/03/2020 – 16º dia de confinamento na Espanha


Sexta-feira o medo e o pânico tomaram conta nesse momento tão incerto, assustador e apocalíptico que estamos vivendo. Eu estava com uma tosse chatinha desde segunda passada e comecei a observar pra ver se melhorava, e nada. Esperei até sexta-feira e resolvi ligar para o posto de saúde aqui do meu bairro.

Me atendeu uma moça que perguntou o motivo da ligação, pediu meu número de documento, nome e telefone e disse que alguém do ambulatório ia me ligar de volta. Passados mais ou menos 15 minutos, me ligou o médico que nada mais escutar a minha tosse pelo telefone, falou:

– Não precisa dizer mais nada, passa aqui no consultório assim que puder.

Subi as escadas, coloquei uma roupa decente para ir ao posto de saúde, fui no banheiro e chorei. Me bateu lá no fundo do coração esse temor de estar com Coronavírus, me bateu esse pânico de ter que sair de casa e encarar o posto de saúde onde certamente o vírus está presente, me encheu o corpo de medo de pensar o que seria da minha filha se eu ficasse mal, tivesse que ser hospitalizada e barranco abaixo foram os meus pensamentos.

Chorei sozinha em silêncio, lavei a cara três ou quatro vezes e não pude chorar muito mais porque tinha que descer e dar tchau para minha filha de 6 anos, que queria me acompanhar.

– Filha, dessa vez não pode ir com a mãe no médico, tem muitos micróbios então tem que ficar em casa.

– Por causa do “Conoravírus” né mãe?

– É filha, a mãe vai la bem rápido e já volta.

E me fui de casa correndo, fechei a porta e saí para um mundo fantástico de ruas sem carros, sem crianças, sem movimento, com pouquíssimas pessoas mascaradas indo não sei pra onde. Nessa correria, esqueci de preencher a “auto-autorização” que é obrigatória levar consigo cada vez que saímos de casa para fazer as únicas coisas possíveis: ir ao supermercado, ao médico/hospital, farmácia…

Cheguei no posto de saúde, que por sorte é quase do lado da minha casa. O acesso ao público está fechado, então espero na porta, vem uma moça pergunta meu nome.

– Ah, Thais, sim o médico está te esperando, põe a máscara e vem comigo.

Coloquei pela primeira vez na minha vida a tal da máscara, entrei e o médico mascarado me chamou diretamente. Perguntou o que eu tinha, expliquei que tinha tosse persistente desde segunda-feira e que esperei para entrar em contato já sabendo da situação desbordada que está a saúde aqui na Espanha (eu moro em Badalona, uma cidade que é quase um alongamento de Barcelona).

Ele pediu pra eu sentar, escutou meu peito e pulmões, perguntou se eu tinha febre, mediu a minha temperatura, tirou a pressão e perguntou se eu era alérgica ou asmática. Com a tensão à flor da pele disse que não, com os olhos cheios de lágrimas. Ele explicou que não tinha nada fora do normal comigo, me receitou um xarope e paracetamol e disse para observar se tinha outros sintomas e se assim fosse, que ligasse de novo para o posto.

Enquanto o médico mascarado escrevia a receita, eu observava a sua mesa cheia de documentos com coisas escritas sobre o COVID-19. Pra matar o silêncio ensurdecedor e calar a minha dúvida gritante, perguntei:

– Vocês tem muitos casos de pessoas com Coronavírus aqui em Badalona?

Ele olhou pra mim… olhou como quem não queria trazer mais pânico… mas era inevitável.

– Me fala a verdade, por favor não mente pra mim.

Ele disse:

– Sim, muitos, temos muitos.

Saí do posto chorando, mascarada, caminhando bem rapidamente em direção à farmácia e já com o telefone na mão porque lembrei que tinha que ter comigo a tal “auto-autorização” para poder ir na fármacia porque se me para a polícia na rua durante o estado de alarme e eu não levo este certificado de auto responsabilidade, eles podem me multar desde 100€ até 15.000€ dependendo do que, quando, como e onde. Fiz o certificado no telefone caminhando e cruzei com mais alguns zombies mascarados.

Na fármacia, fila de pessoas mascaradas. Depois de esperar uns 20 minutos para ser atendida a farmaceutica mascarada, com luvas e todo o arsenal de proteção, não teve coragem de tocar na receita médica, ela puxou o papel com uma caneta e me olhava com uma cara de “ai meu deus o que tem essa daí”. Trouxe os remédios, paguei com cartão – porque agora só se pode pagar tudo com cartão já não existe mais pagar em dinheiro em lugar nenhum por essas bandas de cá.

Aproveitei para passar na esquina que tem uma feira e comprar melancia para a minha filha, não tive coragem de comprar mais nada e voltei correndo pra casa. No caminho idosos mascarados por todos os lados, imagina se eles não fossem o grupo de maior risco! Eu já fui cruzando a rua até que cheguei em casa.

A minha filha veio correndo e eu tive que dizer:

– Nãoooooo filha, não toca na mãe!

Ela parou no meio do caminho, me olhou:

– Eles te deram essa mascara mãe, eu posso provar? Tem uma pra mim?

– Não filha, não pode provar e não tenho uma pra ti.

– O médico te deu essa melancia mãe?

– Não filha, a mãe comprou pra ti.

– Gracias mãma, eres la mejor!

Tirei toda a roupa na porta, fiquei só de calcinha e sutiã. Fiz uma bola com a roupa e como se fosse radioativa coloquei na lavadora. Fui pro banheiro, lavei bem as mãos, o rosto e coloquei roupas limpas. A paranóia – que temos que ter porque o vírus está aí mesmo que a gente não veja – a gente sente a todo momento. A sensação de que está tudo estranho, raro, vazio, isolado é real, e dói… e dá medo… e sufoca… Respirei fundo, finalmente dei um beijo e um abraço na minha filha e pensei: “por enquanto bola pra frente.”

No dia anterior a minha filha, como cada dia da última semana, chorou sentida, com lágrimas que fazem doer a minha alma. Estamos confinadas – hoje 30/03 – há 16 dias e para ela desde a segunda semana tem sido muito difícil a questão do isolamento por diversos motivos:

– ela ia passar a Páscoa na casa do pai dela na França e não vai ir por causa do estado de alarme e porque as fronteiras estão fechadas;

– ela está sem ir pra escola desde o dia 13/03 (o mesmo dia que eu fui despedida por conta do Coronavírus já que a empresa onde eu trabalho podia dispensar dos meus serviços porque trabalhamos com turismo);

– ela não pode fazer nenhuma das coisas simples que gosta como ir no parquinho na frente de casa, ir dar um passeio de patinete, dar uma caminhada na praia, ir no cinema, correr e gritar na rua como qualquer criança.

O pior de tudo é que abrimos a janela cada manhã e vemos pessoas passeando seus cachorros livremente, pessoas saindo de casa para ir na tabacaria sem restrições, pessoas com a sua sacola de supermercado indo em direção a lugares onde não tem supermercado. E ela olha pra rua e não entende porque essas pessoas estão fora e ela não pode. E EU TAMBÉM NÃO ENTENDO!!

A falta de atenção para a infância nessa pandemia ficou muito clara com as medidas tomadas no estado de alerta. Ninguém tá pouco se lixando pras crianças. Primeiro fecharam as escolas durante o estado de emergência – que por sinal, não tem perspectivas de abrir tão cedo e eu acho que já não voltarão a abrir esse ano – , dois dias depois passamos ao estado de alerta, começou o confinamento maaaaas com as seguintes exceções:

– pode passear o cachorro 3 vezes por dia;

– pode ir trabalhar se a empresa não oferece home office e tomando as medidas de segurança;

– pode ir na tabacaria ou quiosques de venda de jornais, etc;

– pode ir no na fruteira 50 vezes por dia;

criança não pode sair pra rua (e se a polícia te parar na rua com uma criança vai te multar, assim explicou a moça da assistencia social o dia que eu fui com a minha filha pegar o cartão merenda que a prefeitura de Barcelona está distribuindo para as crianças que tem beca para comer na escola; eu argumentei que sou “mãe solteira” e não tinha com quem deixar a criança de 6 anos, até porque se eu a deixasse sozinha em casa a moça da assistencia social ia bater na minha porta e ameaçar tirar a minha filha de mim por negligente. Ela olhou pra mim com uma cara “de bem, eu lhe avisei”, eu virei as costas e fomos correndo pra casa como se fossemos fugitivas).

Vejam bem, eu sou totalmente a favor do confinamento e inclusive achava que tinha que ter começado antes e ser mais estrito. Agora vamos lá, pensa comigo porque eu não consigo entender a lógica da coisa, me irrita profundamente a falta de preparo do governo para lidar com o tema do isolamento dos 7 milhões de crianças que vivem na Espanha.

Como pode ser que tudo bem passear os cachorros – 13 milhões por certo – mantendo as distâncias de segurança mas ahhhh não, a criança tem que ficar em casa encerrada?

Como pode ser que idosos, adultos, jovens possam circular tranquilamente para comprar cigarro ou o jornal mas ahhh as crianças não podem colocar o pé fora de casa?

Como pode ser ok pegar o metrô para ir trabalhar mantendo os protocolos de segurança mas peloamordedeus criança não pode colocar o nariz fora de casa porque são os mini vírus assintomáticos contagiadores ambulantes?

A infância sempre tão protegida, dessa vez foi deixada completamente de lado. As medidas tomadas pelo governo não levam em conta nenhuma necesidade das crianças, somente utilizou de uma visão adultista onde as crianças estão invisibilizadas fechadas em casa como seres de última necesidade, como seres que não existem. Eu adoro animais e entendo que tenham que sair para passear mas me perdoem, entre uma criança e um animal, nesse momento de crise eu defenderei com unhas e dentes as crianças.

Se poderia ter pensado e criado um sistema seguro para que as crianças possam dar uma volta na quadra seguindo os protocolos de segurança, para que elas pudessem tomar o sol 10 minutos na rua, sem ir no parquinho, sem tocar em nada; para que elas pudessem correr 5 minutos e arejar a mente, o corpo, o coração; para que tivessem 10 minutos por dia a sensação de liberdade que perderam abruptamente e que não lhes foi explicada a razão pela qual não vão mais à escola, não podem mais ver os colegas, não sabem quando a escola vai reabrir, perderam a rotina, a noção do tempo, a liberdade de passear, ir ao parque, sair de casa.

Os governantes espanhóis fecharam os olhos para a infância, não se dirigiram às crianças, não deram alternativas para os nossos filhos. Os governantes aqui lavaram as mãos e deixaram bem claro que as crianças são assunto exclusivo das famílias e não são um assunto do Estado.

E eu protesto desde o pedestal do nosso privilégio, já que vivemos em uma casa com janelas, espaços amplos, e um pátio. O Coronavírus nos fez ver bem claramente que a gente está confinada mas temos espaço, temos uma parte de fora, temos onde tomar um pouquinho de sol. Imagina as famílias que moram em apartamentos pequenos, com pouca ou quase nenhuma luz, sem uma varandinha para colocar o nariz para fora? Como estarão essas crianças confinadas?

Nisso, domingo passado me ligaram outra vez do posto de saúde. Fiquei com medo. Era a enfermeira para perguntar como eu estava, se tinha outros sintomas, se eu estava melhor e para dizer que durante essa semana iam me ligar de novo para monitorar o meu estado. Por um momento veio de novo a parte humana, que bom que estão tomando o tempo de me ligar, de saber como eu estou, por um momento não me senti abandonada. Deu vontade de chorar dessa vez de alívio.

Na Espanha, hoje temos 85.195 contagiados e 7.340 mortes. Entre os contagiados temos 12.000 sanitaristas, que estão na linha de frente nessa guerra que estão lutando contra a pandemia do Coronavírus onde somente aqui 5.231 pessoas que precisam de UTI – UTI essa que já está no limite em Madri e na Catalunha.

Por conta desses números alarmantes, o governo da Espanha ENDURECE as medidas do confinamento. A partir de hoje 30/03 até o dia 09/04, os serviços não essenciais estão proibidos, ou seja, estamos em um confinamento total.

Quem ainda estava trabalhando já não pode mais, somente os serviços sanitários, de alimentação, farmácias e outros serviços de primeira necessidade estarão abertos.

A notícia chegou tarde, pois muitas comunidades autônomas – como a Catalunha onde eu moro – estavam pedindo o confinamento total mas o governo não estava cedendo.

 

A moral de toda essa história que eu escrevi pra vocês é a seguinte: FIQUEM EM CASA, por respeito às pessoas que assim como nós, estão vivendo esse momento de crise sanitária, de crise econômica, de crise existencial, de crise de sentimentos, de crise de saúde, de crise familiar, de crise escolar, de crise da alma. Tenham vergonha na cara para entender o que estamos explicando, para verificar o que está acontecendo principamente aqui na Espnha e na Itália (e agora Estados Unidos) através de pessoas comuns que tentam mostrar a gravidade desse vírus nas nossas vidas.

O nosso dia a dia parece um filme de ficção científica. A gente não sabe em que momento vai melhorar, quando vai vir outra restrição, como vamos sair dessa. Vivemos um dia de cada vez, tentando ser pacientes, nos reinventando, cuidando das relações dentro de casa; no meu caso olhando atentamente para as angústias da minha filha, explicando pra ela em palavras que ela possa entender o que está acontecendo, tentando rir, tentando guardar o pânico, o medo, a incerteza.

Nós perdemos o direito de ir e vir, mas não perdemos o direito de existir e resistir como seres cada vez mais humanos, cientes das nossas fraquezas e potências, deixando sair os sentimentos, mostrando a nossa capacidade de sermos seres sociais, coletivos, empáticos e solidários.

Nós ganhamos tempo de aprender a ser de novo.

1 comentário Adicione o seu

  1. Gisele disse:

    Aqui não está muito diferente as restrições,porem não assim sem poder sair e as pessoas saem, se amontoam, os idosos livremente nas ruas, famílias, o que não entendem é que esse vírus deixa sequelas nos pulmões, a transmissão é rápida, creio que se nos sacrificarmos um pouco agora, teremos muita liberdade lá adiante. E quanto às crianças é mais fácil ver um adulto perder a vida pela doença do que uma criança.

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